domingo, 16 de maio de 2010

O neandertal está morto! Viva o neandertal!

ResearchBlogging.orgNo primeiro post, vimos que os primeiros neandertais apareceram cerca de 400 mil anos atrás, que estavam restritos à Europa e à Ásia Ocidental, e que desapareceram há cerca de 30 mil anos. Humanos modernos também se originaram na África e foram se expandindo ao redor do globo, a partir de uns 80 mil anos atrás. Continuando então a leitura sobre o neandertal, vejamos agora o artigo mais comentado (e o comentário na revista).

A análise começou com uma amostra de 21 ossos sem importância morfológica de um sítio arqueológico na Croácia, de onde extraíram um pouco de material ósseo (com uma broca de dentista!). Dessa amostra os pesquisadores elegeram três ossos para realizar o sequenciamento,  vindos de três fêmeas e datados entre 38 e 44 mil anos. Esse material continha entre 95 e 99% de DNA microbiano (bactérias que colonizaram os ossos nos últimos milênios), e além disso estavam também contaminado por DNA humano difícil de distinguir do DNA neandertal devido à similaridade. Os autores da pesquisa passaram os últimos vinte anos desenvolvendo a tecnologia para sequenciar esse tipo de material, que inclui correção computadorizada da degradação química, enzimas que destroem seletivamente os contaminantes e busca em bases de dados dos segmentos sequenciados para verificar a origem.

Eles sequenciaram no total mais de 4 bilhões de pares de bases (sítios de DNA), para compor os 3 bilhões de pares de bases do genoma neandertal. Isso equivale a uma cobertura média de 1,3: bem menor que o outro trabalho com microarray que vimos antes, mas muito mais ampla pois aqui temos quase todo o genoma (algumas regiões não estão representadas). Este genoma neandertal é uma composição entre as três espécimes, e não o genoma de um único indivíduo. Eles comparam algumas regiões com outras sequencias de neandertais para confirmar, e o mais importante: compararam também com os genomas de cinco indivíduos atuais: dois africanos (de etnias distintas), um francês, um chinês e um papuásio (de Papua-Nova Guiné). A partir daí puderam fazer várias comparações estatísticas baseadas em variações da figura abaixo:



Árvore filogenética usada nas comparações entre os genomas alinhados
(figura modificada do artigo doi:10.1126/science.1188021)


Por exemplo, pode ser estimado que a divergência entre o genoma neandertal e o genoma humano de referência (aquele genoma "artificial" que tenta reproduzir nossa variabilidade genética) é mais ou menos 12% da divergência entre o genoma de chimpanzé e o genoma humano, enquanto os cinco genomas individuais apresentam divergência média entre 8 e 10%. Ou seja, os genomas individuais possuem quase a mesma distância do genoma humano de referência do que o genoma nenadertal. O que quer dizer que os neandertais são de fato muito próximos de um humano moderno - apesar de um pouquinho mais distintos.

Usando um raciocínio similar ao do outro trabalho publicado conjuntamente, os pesquisadores detectaram 78 substituições de nucleotídeo que modificaram uma proteína em humanos, após a separação de homens modernos e neandertais. Essas proteínas estão associadas a células epidérmicas, adesão celular (possivelmente cicatrização), movimento flagelar de espermatozóides, e transcrição gênica. Eles também encontraram várias regiões não-codantes (não são traduzidas para proteínas) que são únicas aos humanos modernos, e essas regiões são promissoras agora que começamos a entender sua importância - vide epigenética, microRNA e cia.

Outro método usado foi a detecção de regiões sujeitas à varredura seletiva (o nome em inglês é selective sweep, e quer dizer mais ou menos um "arrastão" seletivo), e se baseia no fato que quando um variante gênico é vantajoso, ele eventualmente poderá ser fixado na população, e caso contrário observaremos mais de um variante. Os autores usando esse método detectaram 212 regiões que podem estar sob esse tipo de seleção, entre elas genes associados a células epiteliais, autismo, diabete e esquizofrenia. Aqui cabe um aviso: isso não quer dizer que os neandertais tivessem esses problemas, muito menos que os genes foram selecionados para termos essas doenças! Não se sabe nem a função exata desses genes em humanos, apenas as consequencias de sua deficiência. Outro gene detectado pelo método é um fator de transcrição associado à displasia cleidocraniana (em inglês é cleiodocranial dysplasia, não estou seguro da minha tradução tabajara). Essa é uma doença que causa atraso na junção dos ossos do crânio, deformação do quadril e das clavículas, engrossamento dos arcos superciliares (ossos da sobrancelha) e anomalias dentárias - algumas características de neandertais.

De acordo com os novos dados, a divisão entre a linhagem que deu origem aos humanos modernos e a linhagem que originou os neandertais se deu entre 270 e 440 mil anos atrás, na África - estimativa parecida com a de 500 mil anos a partir do DNA mitocondrial. E a conclusão mais divulgada, que é a de que houve cruzamento entre humanos e neandertais - provavelmente entre 50 e 80 mil anos atrás, ou seja, depois de populações de humanos saírem da África mas antes de se expandirem para a Ásia, Oceania, Américas, etc. A fração do genoma dos três indivíduos não-africanos de origem neandertal é entre 1 e 4%, mas esse material não parece ser seletivamente relevante.

A baixa porcentagem de DNA neandertal no genoma do humano moderno indica que o contato entre ambos foi limitado - que paleontólogos já suspeitavam ser o caso. Outra evidência da pouca ou limitada hibridização é o fato de que o genoma do europeu, do asiático e do austronésio possuírem a mesma distância genética do neandertal: se o contato foi comum, espera-se que o europeu seja mais parecido do que o asiático, por exemplo, dado que os europeus teriam ficado (ops!) com os neandertais enquanto outros grupos se expandiriam para o leste. Usando uma analogia, imagine que você e seu irmão vão para a Romênia (e não, não há skype nem wikipedia nessa analogia). Vocês passam um ano por lá, e você então decide ir para a China, mas seu irmão permanece na Romênia. Após uns dez anos eu diria que seu irmão deve estar falando romeno melhor que você... enquanto isso, a sua irmã que ficou no Brasil o tempo todo não faz a menor idéia de como falar romeno. Essa irmã da estorinha seriam os africanos analisados na pesquisa. E continuando a analogia, eu descubro que tanto você quanto seu irmão falam um pouquinho de romeno, e dominam o chinês. Eu posso então desconfiar que seu irmão também foi prá China com você, após um ano na Romênia. Porém, na pesquisa real ainda falta estudar mais etnias africanas para verificar se não há ancestralidade neandertal mesmo, pois a diversidade genética africana é muito grande.

Mesmo com toda essa tecnologia, clonar um neandertal está fora de cogitação: além do genoma do neandertal com muito maior qualidade, teríamos que saber as modificações químicas, arranjos cromossômicos no núcleo e no material materno; o processo de clonagem depende ou de duas células (uma com o núcleo e outra com o óvulo) ou então de células-tronco reprogramáveis, o que é quase impossível; levanta muitas questões éticas - neandertais devem ter o status de humano, e há vários assuntos mais urgentes como pesquisas clínicas.

Referências:
Gibbons, A. (2010). Close Encounters of the Prehistoric Kind Science, 328 (5979), 680-684 DOI: 10.1126/science.328.5979.680
Green, R., Krause, J., Briggs, A., Maricic, T., Stenzel, U., Kircher, M., Patterson, N., Li, H., Zhai, W., Fritz, M., Hansen, N., Durand, E., Malaspinas, A., Jensen, J., Marques-Bonet, T., Alkan, C., Prufer, K., Meyer, M., Burbano, H., Good, J., Schultz, R., Aximu-Petri, A., Butthof, A., Hober, B., Hoffner, B., Siegemund, M., Weihmann, A., Nusbaum, C., Lander, E., Russ, C., Novod, N., Affourtit, J., Egholm, M., Verna, C., Rudan, P., Brajkovic, D., Kucan, Z., Gusic, I., Doronichev, V., Golovanova, L., Lalueza-Fox, C., de la Rasilla, M., Fortea, J., Rosas, A., Schmitz, R., Johnson, P., Eichler, E., Falush, D., Birney, E., Mullikin, J., Slatkin, M., Nielsen, R., Kelso, J., Lachmann, M., Reich, D., & Paabo, S. (2010). A Draft Sequence of the Neandertal Genome Science, 328 (5979), 710-722 DOI: 10.1126/science.1188021

Para saber mais:
Neandertal Genome Analysis Consortium Tracks at UCSC
Science Daily
Carl Zimmer
Neandertais, há quatro anos e hoje (primeiro post da série)
Como capturar um neandertal (segundo post da série)

Crédito da Imagem: artigo da Science

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